sexta-feira, 14 de maio de 2021

Meu quarto, meus livros, minha “biblioteca”: alguns comentários sobre meu pequeno canto do mundo

 

"Eu sempre imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca" - Jorge Luis Borges

 


O período de pandemia obrigou muitos profissionais a adotar o chamado “home office”, também conhecido mais simplesmente como “trabalhar de casa”. Com os professores isso não foi diferente, de modo que, de repente, nos vimos obrigados a transmitir nossas aulas diretamente de nossas casas, seja da sala, do escritório ou dos seus próprios quartos. O meu caso se enquadra precisamente nessa última categoria, na medida em que o restante da minha casa é barulhento e caótico demais para tornar possível qualquer outra alternativa. Sendo assim, todas as minhas atividades digitais (ministrar aulas, ter aulas do doutorado, participar de reuniões, palestras e eventos) são feitas no meu quarto.

Existe aqui uma bancada fixa na parede, que é onde o computador fica apoiado para a realização de todas essas atividades, o que faz com que minhas opções de como enquadrar a câmera fiquem bastante limitadas. Em outras palavras, é basicamente apenas um ângulo de exibição, o que necessariamente coloca as minhas estantes atrás de mim no enfoque. Trata-se, portanto, de uma imagem bastante conhecida a essa altura, antes limitada aos correspondentes e especialistas participantes de jornais, mas que hoje se tornou ainda mais comum até pelas exigências da pandemia e do ensino digital: um sujeito falando sobre determinado conteúdo com diversos livros dispostos em exibição atrás dele, os quais, inevitavelmente, chamam a atenção.

Em um primeiro momento, pode-se ver isso como intencional. O cenário típico que representa um certo tipo de autoridade intelectual e confere ao sujeito que fala alguma “autoridade”, mesmo que em um nível inconsciente. Não à toa, diversas pessoas constroem tais cenários propositalmente, se posicionando de tal forma para realizar suas atividades acadêmicas e profissionais na frente de um computador. Confesso que eu não vejo nada intrinsicamente negativo com essa prática comum, mesmo que muitas vezes ela seja alvo de comentários, alguns críticos (ato de esnobismo, pretensão, soberba) e outros bem-humorados (“vende-se imagem de papelão com cenário de livros para você colocar no fundo das suas atividades digitais”).

De toda forma, gostaria de enfatizar que não julgo e muito menos condeno aqueles que fazem isso deliberadamente, seja por quais motivos forem. Já dizia o poeta: cada um no seu quadrado. No meu caso, no entanto, não é nem um pouco intencional e, se vamos falar francamente aqui, a verdade é que eu que não me sinto lá muito confortável com isso e se fosse possível, o que já estabelecemos que não é, eu preferia muito mais ter a exibição de uma parede básica por detrás de mim. Em outras palavras, sendo bem direto: não, eu não estou exibindo minhas estantes e meus livros para você propositalmente, Caro(a) Leitor(a). Na verdade, se dependesse de mim, eu preferia que minha pequena “biblioteca” e meu quarto em si, com sua decoração um tanto quanto irreverente (e existem motivos por detrás dessa irreverência que serão objetos de um próximo texto), permanecessem seguindo a mesma lógica que ditou boa parte da minha vida: algo que apenas poucas pessoas, muito próximas, tinham acesso.

Existem alguns motivos para toda essa reticência e reserva em relação ao meu quarto, os quais precisam ser abordados aqui. Conforme já foi mencionado em outro texto (se você ainda não leu, dê uma olhada: https://resquiciosanalogicos.blogspot.com/2020/04/solitario-de-chaboute-solidao-como-uma.html), meu quarto foi, por boa parte da minha vida, um recanto onde eu me refugiava (ou, às vezes, me escondia, está aberto à discussão) do resto do mundo. Sendo assim, tratava-se de uma espécie de oásis em meio a uma vida que, especialmente na dimensão familiar, era composta muito mais por problemas, conflitos e estresses do que por momentos de calma e tranquilidade. Por conta disso, construí uma certa ideia de “sacralidade” a respeito deste que foi, durante muito tempo e por muitas vezes, um lugar de segurança, tranquilidade e sossego. E, assim, cresci acostumado com essa dinâmica: um certo protecionismo e reserva em relação ao meu quarto.

Imagine minha surpresa, Caro(a) Leitor(a), quando por conta da pandemia e da situação das atividades digitais este que era o meu recanto isolado e de difícil acesso para o mundo exterior deixou de ser apenas um local de estudo e produção individual para se tornar, além disso, a minha “estação de trabalho”, isto é, o local a partir do qual eu desempenho basicamente todas as minhas atividades. Em termos diretos, subitamente inúmeras pessoas, cerca de 400 a 500 alunos, passaram a ter acesso, mesmo que de forma digital e apenas visual, a um lugar que eu gostava de preservar o máximo possível do resto do mundo. E eu confesso para vocês: de início, eu estranhei muito tudo isso.   

Assim que a dinâmica de atividades digitais se instaurou e eu passei a ministrar aulas daqui do meu quarto, parte dele, especificamente as estantes que ficam atrás de mim durante a exposição, se tornou “lugar comum”: os alunos podiam ver meus livros, os objetos de decoração, as pequenas idiossincrasias que compõem esse canto e refletem uma parcela de quem eu sou. Podiam, como muitas vezes fizeram, comentar sobre os livros, perguntar a respeito deles e também sobre os objetos de decoração, dentre outras várias coisas. Meu impulso inicial diante dessa situação de estranhamento foi uma certa “cautela”, uma certa reticência em compartilhar essas coisas que, na minha visão, eram tão privadas e preciosas, com outras pessoas.

Contudo, com o passar do tempo e com o desenvolvimento das interações nesse sentido, de conversar sobre as coisas que compõem esse pequeno cenário pitoresco que os alunos viam ao fundo, fui gradativamente deixando o desconforto para trás e, eventualmente, me tornei cada vez mais confortável com isso, passando inclusive a apreciar esse tipo de interação. Não me entenda mal, Caro(a) Leitor(a), eu ainda não aprecio a exposição, pessoalmente não me apetece nem um pouco a postura “olhem, vejam quantos livros eu tenho”. Isso simplesmente não faz muito meu estilo. Mas, passei a não me importar com o “acesso” (pelo menos de forma digital/visual, não estou abrindo excursões, muito obrigado), de outras pessoas ao meu recanto e às coisas que eu tão cuidadosa e carinhosamente reuni aqui e passei a verdadeiramente apreciar aquelas interações que se tornam possíveis por esse compartilhamento.

Não à toa, a partir disso estou gradativamente me tornando mais aberto e flexível com essa questão de “exposição” do meu quarto, dos meus livros, das minhas coisas. Isso é até mesmo verificável empiricamente, basta ver que há a publicação de algumas fotos em redes sociais que buscam compartilhar algumas coisas daqui do meu recanto, algo que até alguns anos atrás era impensável para mim. Por fim, indiretamente isso contribuiu até mesmo para o projeto Resquícios Analógicos, o que nada mais é do que um tipo de exposição: sobre que eu sinto e penso, sobre as coisas que eu gosto e desgosto, sobre os livros, filmes, séries e quadrinhos que eu aprecio e o porquê.

Eu sempre gostei de interagir com as pessoas, discutir sobre as coisas que eu gosto e aprender com o outro a partir das suas opiniões e preferências. Foi assim que chegaram até mim diversas das coisas que hoje em dia são centrais no meu gosto e na minha personalidade, como por exemplo algumas das minhas bandas favoritas, alguns dos autores literários que mais gosto, além de inúmeros outros exemplos que incluem filmes, séries, jogos, os quais eventualmente serão tratados nos textos aqui publicados. É sempre bom descobrir uma nova forma de interação a qual eu não estava acostumado e que não me sentia confortável, especialmente em tempos tão conturbados como estes que nos encontramos.

Sendo assim, pegue uma cadeira e sente-se junto à fogueira, Caro(a) Leitor(a), vamos conversar.

7 comentários:

  1. Sua escrita pra mim bom como eu posso dizer isso mas ela é impecável e encantadora você consegue prender o leitor sem utilizar recursos apelativos mas sim a naturalidade da escrita que motiva o leitor continuar até o final. Espero poder cada vez mais ler o seu trabalho

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Mestre, I see your true colors shining through

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  4. So don't be afraid to let them show

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