sexta-feira, 21 de maio de 2021

Ruína, esperança e aqueles que carregam o fogo: um ensaio sobre A Estrada, de Cormac McCarthy.

 “He lay listening to the water drip in the woods. Bedrock, this. The cold and the silence. The ashes of the late world carried on the bleak and temporal winds to and fro in the void. Carried forth and scattered and carried forth again. Everything uncoupled from its shoring. Unsupported in the ashen air. Sustained by a breath, trembling and brief. If only my heart were stone.”

Cormac McCarthy, A Estrada.



Decidi recentemente revisitar uma obra que me impactou muito quando a li pela primeira vez, quase uma década atrás. Trata-se de A Estrada, de Cormac McCarthy, um dos livros mais tristes e bonitos que já tive a oportunidade de ler, tornando-o imediatamente um dos meus favoritos, já que a combinação beleza e melancolia acaba sendo um dos meus pontos fracos no que diz respeito a narrativas e músicas.

Confesso que estava curioso para ver que efeitos essa releitura causaria em mim, tantos anos depois, tantas coisas já diferentes. Com o passar do tempo, as coisas vão se alterando em nossas vidas e deixamos de ser exatamente quem éramos, em maior ou menor grau, na medida em que novas experiências vão sendo incorporadas no processo constante de construção da nossa identidade. Aquilo que outrora parecia indispensável e inafastável acaba inadvertidamente ficando pelo caminho, sejam amizades ou relacionamentos, certezas ou traços da sua própria personalidade. Da mesma forma, coisas que antes pareciam impensáveis ou impossíveis subitamente fazem parte de você, da sua vida, da sua realidade. Tudo isso aconteceu comigo. E, confie em mim , vai acontecer com você também, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra. Assim é a transitoriedade da vida.

Dessa forma, ao revisitar uma obra depois de um tempo significativo, seja um livro, filme, série ou jogo, você pode descobrir, Caro(a) Leitor(a), uma experiência radicalmente nova e diferente daquela que você teve da última vez. Não foi tanto o livro que mudou, mas o leitor; não se alterou o texto, mas os olhos que o leem e o sujeito que o interpreta. Nós vemos nas histórias reflexos do que carregamos em nós mesmos: medos, anseios, traumas, desejos, ambições, esperanças. Por isso as pessoas se relacionam de maneiras distintas com uma mesma história ou personagem: o que ressoa em cada um varia e é dependente daquilo que se carrega dentro de si. Que mudanças me aguardavam então ao revisitar esse livro?

Acabei descobrindo, confesso que com uma certa dose de surpresa, que embora muita coisa tenha mudado, externa e internamente, existem coisas que permanecem as mesmas. Que embora eu não seja mais aquele sujeito que leu esse livro a tanto tempo atrás, algumas coisas ainda ressoam comigo da mesma forma que fizeram da primeira vez, ainda que várias outras agora o façam de maneira diferente. E, com uma nova percepção proveniente das experiências adquiridas ao longo desses anos, algumas boas e outras ruins, me descobri diante de um livro do qual eu gostei mais ainda do que da primeira vez que o li. E é justamente sobre isso que eu gostaria de falar aqui, neste pequeno ensaio.

A Estrada conta a história de um mundo pós-apocalíptico, o qual ao que tudo indica foi consumido pelas chamas de uma guerra nuclear, restando apenas um cenário de desolação que existe em meio aquilo que parece ser um inverno nuclear. Nunca é explicitamente definido o que exatamente aconteceu, temos apenas alguns vislumbres incertos do que poderia ter causado tudo isso através das lembranças de um dos personagens que acompanhamos: as cidades sendo consumidas em chamas e o mundo sendo tomado por cinzas e escuridão. Mas uma coisa é certa, restou muito pouco daquele mundo que outrora existiu. O cenário é de devastação, escassez de recursos e luta pela sobrevivência, tanto contra as condições de vida quanto contra outros sobreviventes.

Nesse mundo de cinzas, um mundo que já foi e agora não é mais, o qual parece ainda existir mais por hábito do que por qualquer outro motivo, acompanhamos a jornada de dois personagens em sua tentativa de sobreviver: um pai e um filho, os quais jamais são nomeados ao longo do livro, referindo-se um ao outro apenas como “Papa” e “The boy”, respectivamente. Peregrinos viajando ao longo de uma estrada, rumo ao sul, para longe do frio, buscando sobreviver. Acompanhamos suas vidas duras e difíceis, cheias de dor e sofrimento, de situações horríveis, aterrorizantes e desesperadoras, mas que também são atravessadas por momentos de afeto, amor e esperança, enchendo a narrativa de uma dimensão emocional profunda e interessante, a qual faz com que você fique genuinamente interessado e engajado na história, sempre querendo saber o que vai acontecer e qual será o destino daqueles personagens.

Não vou entrar em pontos cruciais da narrativa, de modo estraga-la. Em outras palavras, sem spoilers. Mas me parece importante destacar alguns elementos que permeiam a obra e a tornam, a meu ver, excepcional. Em primeiro lugar, de um ponto de vista técnico, a linguagem e o estilo de escrita que são utilizados para contar a narrativa são elementos que merecem destaque, tamanha é a qualidade apresentada. Neste livro, McCarthy apresenta um estilo duro e conciso, mas que também é atravessado ocasionalmente por passagens profundamente poéticas que causam um grande impacto no leitor. Por diversos momentos isso aconteceu comigo e me vi lendo e relendo o mesmo trecho diversas vezes a fim de assimilar tudo aquilo que ela evocava.

A citação que abre este ensaio é um ótimo exemplo disso, mas o livro contém inúmeros outros igualmente belos e melancólicos, dentre os quais destaco a frase “Borrowed time and borrowed world and borrowed eyes with which to sorrow it”, a qual bem resume esse mundo desfeito em cinzas, as quais se dispersam gradativamente no ar até nada mais restar.  Por esse motivo, recomendo fortemente que, se possível, a leitura seja feita no idioma original, em inglês, a fim de preservar o estilo e, consequentemente, a qualidade própria que a narrativa possui, mesmo que em certos momentos, especificamente aqueles mais poéticos, a leitura seja um pouco desafiadora.

Essa mescla entre concisão e poesia, entre dureza e beleza, não está limitada apenas ao aspecto técnico do livro, mas também, como já foi dito anteriormente, permeia a narrativa em si. Trata-se de um mundo desolado e devastado, no qual a sobrevivência é extremamente difícil. Têm-se o tempo todo a preocupação do pai em como garantir a sobrevivência deles diante da fome, do frio, da doença e também de outros sobreviventes, os quais poderiam mata-los a qualquer momento ou coisa pior. É um mundo habitado por bandos de saqueadores e canibais, os “caras maus” conforme o pai se refere a eles quando fala com o menino, onde a busca pela sobrevivência reduziu a maioria dos sujeitos que restaram aos seus piores instintos e impulsos.

Isso por si só já seria suficiente para gerar um embrutecimento dos personagens, em especial do pai, desumanizando-os. Esse, no entanto, fortuitamente não é o caminho tomado pelo pai e seu filho. Não há apenas a preocupação de sobreviver, encontrando o necessário para tanto, como abrigo, comida e remédios, mas também em como eles vão sobreviver, isto é, as condutas que eles vão tomar para tanto. E é precisamente neste ponto, Caro(a) Leitor(a), que o livro apresenta os elementos que mais me impactaram quando da minha leitura. Não basta apenas sobreviver, pensa o pai, mas é preciso também preservar, dentro dos limites do possível, alguns preceitos morais e o tanto de inocência do garoto quanto um mundo desses pode permitir. É preciso, como o menino constantemente reafirma, que eles sejam os “caras bons”, isto é, “aqueles que carregam o fogo” em meio as ruínas.

Têm-se então uma narrativa de um pai que se preocupa em fazer o necessário para que o seu filho sobreviva, enfrentando todas as dificuldades possíveis e imagináveis, ao mesmo tempo em que tenta não se deixar embrutecer pelas circunstâncias em que se encontra. Assim, existe uma dimensão de cuidado a respeito do menino que não se limita aos aspectos práticos da sobrevivência, mas vai muito além disso e envolve toda uma dimensão afetiva e moral. Isso fica evidente em diversos momentos do livro, conforme os personagens vão avançando em sua jornada, seja na preocupação constante do pai com o bem-estar do filho, tanto prático quanto afetivo, seja em eventos específicos que tornam isso mais evidente.

 Dentre essas situações, algumas em especial chamaram minha atenção, as quais destaco aqui. O pai contando ao filho “velhas histórias de coragem e justiça”, conforme ele ainda se lembra delas. A preocupação do garoto em como eles devem tratar outros “viajantes peregrinos” que encontram ao longo da jornada pela estrada, de modo a compartilhar com eles o que se tem. As reações do pai aos erros do filho, sempre buscando ser caridoso e gentil mesmo quando estes ocasionam perdas de recursos e suprimentos preciosos. A prioridade que sempre é dada a ao filho, seja em termos de alimentos, remédios ou roupas. E, por fim, o pai dando ao filho a última iguaria de um mundo que não existe mais, uma lata de Coca-Cola intacta, por sorte encontrada. São esses momentos, alguns pequenos e simples, outros de grande impacto e repercussão na jornada, que evidenciam sempre a mesma coisa: amor, afeto e esperança em meio ao fim do mundo.

A primeira vez que eu li este livro, quando tinha cerca de 20 anos de idade, essas passagens ressoaram bastante comigo, por motivos muito pessoais. Em primeiro lugar, porque meu próprio pai em nada se assemelha ao personagem acima descrito, figura de afeto e cuidado, seja ele material ou afetivo. Bem diferente, trata-se de alguém com quem eu tenho, sendo generoso na descrição, uma relação bastante precária. Em segundo lugar, porque naquela época, mais jovem e um tanto quanto mais otimista, a ideia de ter uma família e filhos era algo central no meu projeto de vida, talvez até mesmo o ponto mais importante dele. Assim, via na narrativa uma representação daquelas virtudes que considerava que deveria ter com meus próprios filhos, quando os tivesse.

Quase dez anos se passaram e muita coisa está diferente, ainda que algumas permaneçam as mesmas. Por um lado, a situação com meu pai ainda segue em seu estado de precariedade: toda relação interpessoal, seja familiar, de amizade ou de natureza amorosa, envolve dois polos e ambos precisam estar dispostos a se esforçar para que as coisas funcionem. Assim, não existe resolução catártica de filme de Hollywood ou de novela da Globo quando apenas uma das partes toma as medidas necessárias para tentar solucionar os problemas. Às vezes, o que nos resta é aceitar como as coisas são e seguir em frente.

Por outro lado, uma coisa que mudou consideravelmente foi como eu encaro a questão de formar uma família, ter filhos. Por diversos motivos, a maioria dos quais não cabe adentrar aqui neste momento, fui pensando cada vez menos nisso e esse desejo foi sendo gradativamente reduzido. Hoje em dia existem inúmeras outras prioridades na minha mente e, sendo bem sincero, acho que não me vejo mais fazendo isso. Talvez isso mude um dia, quem sabe. Talvez não. Como eu disse lá em cima, as coisas mudam. Assim é a transitoriedade da vida.

De todo modo, a releitura me permitiu enxergar algumas coisas que não consegui perceber da primeira vez. Em parte por causa das mudanças que ocorreram, de perspectiva, experiências e de projeto de vida, em parte por um amadurecimento que, com sorte, vamos adquirindo, mesmo que muitas vezes de maneira dolorosa, ao longo da vida. Assim, ainda que minha impressão original não tenha sido alterada em sua essência, ela se aprofundou. Tornou-me mais evidente um elemento muito importante, o qual não havia conseguido visualizar totalmente na narrativa da primeira vez que a li: as dificuldades do pai em fazer tudo isso, seja na dimensão física, psicológica, emocional, moral ou existencial.

Relendo, tornou-me muito mais evidente o sofrimento e a luta do pai na narrativa. Suas dificuldades físicas, em parte por conta da idade e em parte pela doença e pela fome. Suas dificuldades psicológicas, pois precisa enfrentar tudo aquilo e ainda ser o suporte do seu filho. Suas dificuldades emocionais, quando ocasionalmente relembra aquela que foi sua vida antes do mundo acabar, antes de tudo desmoronar em ruínas. Suas dificuldades morais, tentando manter ele e seu filho vivos, ao mesmo tempo em que precisa seguir sendo um dos bons, um daqueles que carregam o fogo. E, por fim, suas dificuldades existenciais, quando vez ou outra se pergunta se haveria mesmo algum sentido nisso tudo ou se não seria o caso de simplesmente encerrar as coisas de uma vez, para ele e para o menino. Tornou-se, portanto, uma experiência de leitura muito mais rica e interessante.

Em resumo, simplificando um pouco as coisas, talvez da primeira vez, ainda saindo da adolescência, eu tenha visto a narrativa a partir dos olhos do filho, daquele que se encontrava na posição de quem necessitava do cuidado. Talvez agora, já encerrando a fase de “jovem adulto” e partindo sem desculpas para vida adulta, eu esteja enxergando a narrativa mais especificamente pela perspectiva do pai, daquele que precisa assumir em definitivo os ônus e as responsabilidades sobre a vida. Talvez na verdade eu ainda esteja em um meio termo, transitando entre um e outro. Confesso que não sei exatamente. Daqui a dez anos, quando eu pegar esse livro de novo e reler este pequeno ensaio aqui, vou refletir sobre isso. Vai saber o que irá acontecer e como as coisas vão estar até lá. Vai saber quais vão ser meus objetivos, prioridades e projetos de vida. Vai saber que tipo de sujeito eu serei e com que olhos eu vou ler esse livro.

Assim é a transitoriedade da vida: como cinzas espalhadas pelo vento. Eu espero apenas ser digno de carregar o fogo.

 

OBS 1: Para aqueles que se interessarem pelo livro, eis aqui o link da Amazon na versão que eu li:

https://www.amazon.com.br/gp/product/0307386457?pf_rd_r=YB1HEGNGWK1V66KP30W0&pf_rd_p=72a7651a-a7d8-4551-b248-c61480b6ce6e&pd_rd_r=4a91662e-388b-437b-bee7-9b0f67394c8a&pd_rd_w=BEFSW&pd_rd_wg=vdRVI&ref_=pd_gw_unk)

 

OBS 2: Existe adaptação cinematográfica do livro, com o Viggo Mortensen como o Pai. Ela também é bem boa e vale a pena ver, mas se possível leia o livro primeiro, como geralmente acontece o livro é melhor que o filme. 

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