sexta-feira, 3 de abril de 2020

Solitário, de Chabouté: A Solidão como uma ilha entre o Refúgio e o Aprisionamento.


“Um navio de pedra imóvel, um barco de granito que não balança. Ele não nos leva a lugar algum, ele nunca acosta. A bordo de um farol, nunca atracaremos em porto algum”.
- Solitário, de Chabouté. 
 

               As histórias em quadrinhos são uma forma de arte que ainda é pouco reconhecida em comparação com as demais. Não é incomum você perceber certa incredulidade, ou até mesmo certo desdém, de pessoas mais versadas em termos de arte quando o assunto é quadrinhos. Com frequência tem-se uma visão condescendente, vulgo esnobe, ou até mesmo hostil em relação à afirmação de que os quadrinhos são sim uma forma de arte merecedora da nossa atenção e digna de inúmeros elogios.

               Talvez essa “desconfiança”, vamos colocar assim, se dê pelo fato de que se trata de uma forma de arte relativamente nova. Talvez seja porque enxerguem os quadrinhos como algo fundamentalmente associado a uma “cultura de massa” e, portanto, inferior. Talvez seja desconhecimento de causa, uma falta de compreensão acerca das inúmeras produções de quadrinhos de altíssima qualidade artística, tanto em termos de arte visual quanto da narrativa construída, como Sandman e Y – O Último Homem, só para citar alguns. Talvez seja simplesmente preconceito, puro e simples. Quem sou eu pra saber?

               Situados em uma posição que torna possível a utilização simultânea de arte visual e texto literário na construção de uma narrativa, os quadrinhos nos oferecem uma maneira singular de adentrar e desfrutar de uma história, isto é, tanto a partir dos estímulos visuais oferecidos pelas ilustrações quanto por conta do argumento construído textualmente nas páginas da obra. É precisamente nessa junção que reside todo o potencial de uma história em quadrinhos enquanto forma de arte; é por conta disso que ela se destaca enquanto modelo de construção de narrativa.

               O artista francês Cristophe Chabouté, autor de trabalhos excelentes como Um Pedaço de Madeira e Aço, afirma: “A questão dos quadrinhos é que o que a gente não pode escrever, a gente desenha, e o que a gente não pode desenhar a gente escreve. Então, é na combinação dos dois que eu me encontro”. Não é surpresa, então, que ele utilize muito bem tanto do aspecto visual quanto do aspecto literário para contar uma história bela e sensível sobre solidão, imaginação e as coisas que nos fazem humanos naquela que é minha obra favorita de sua autoria, Solitário.

               A narrativa, e não se preocupem que abordarei aqui os elementos centrais sem estragar nada, conta a história de Solitário, um homem cujo mundo inteiro se resume ao farol onde passou toda a sua vida, sem jamais conhecer nada além disso. Filho de um faroleiro, Solitário nasceu com deformidades e seus pais, envergonhados disso, nunca permitiram que ele tivesse qualquer contato ou interação com o mundo exterior. Mesmo após a morte de seus pais, Solitário, assim apelidado pelo sujeito que semanalmente deposita caixas de suprimento no cais do farol, permaneceu ali, naquele rochedo e naquele farol, sem jamais conversar com ninguém e se escondendo sempre que alguém se aproximava em demasia.

               Sozinho exceto pela companhia de um pequeno peixe deixado em um aquário e alguns brinquedos dados pelos seus pais quando era criança, Solitário passa seus dias pescando, cuidando dos seus afazeres diários e da manutenção do farol. Com muita sorte, eventualmente pesca alguma coisa do mundo exterior que veio, vagando pelo mar, parar em suas mãos: uma bola de tênis, um carrinho de brinquedo, um cavalo de madeira. À noite, no entanto, Solitário se volta para aquela que é a sua principal forma de lazer, qual seja, a leitura de um velho e surrado dicionário que ele guarda com considerável carinho em sua estante.

               De que maneira a leitura de um dicionário pode servir como lazer ou entretenimento, você pode se perguntar talvez com certo espanto. A questão é que Solitário se utiliza do dicionário como uma porta para o mundo exterior, como um meio de imaginar como seria a vida lá fora. Toda noite, por diversas vezes, ele lança o dicionário ao ar para então deixá-lo cair aberto em cima de sua mesa e, de olhos fechados, posiciona sua mão sobre uma das definições ali existentes. E, a partir disso, imagina. Tendo como base seu conhecimento limitado sobre as coisas do mundo, Solitário busca tentar imaginar e compreender aquilo que lê no dicionário, aquelas coisas que são tão distantes da sua vida.

               Ao ler a definição de centauro, Solitário busca imaginar e compreender como seria a junção de um cavalo com o torso de um homem. Ao ler a definição de batalha imagina, a partir de seus soldadinhos de brinquedo, como seria esse combate significativo entre dois exércitos. Ao ler a definição de borboleta, imagina como seria esse inseto voador dotado de asas coloridas. Ao ler a definição de solidão como pessoa que vive em local isolado ou deserto, ele reflete sobre a sua própria condição.  E ao ler a definição de monstro, como criatura hedionda de aspecto assustador, Solitário se levanta e olha no espelho.

               É nesta junção entre palavras, a partir das definições do dicionário, e imagens, com a imaginação de Solitário tentando conceber e compreender aquilo que lê, que o talento de Chabouté se destaca. De forma bastante sensível e delicada, o autor explora a partir disso as limitações, inquietações e anseios de Solitário. Quando se depara com alguma definição que não consegue compreender, como a definição de monocotiledônea, ele se frustra e desiste da leitura pelo dia, indo dormir. Por diversas vezes, em função do seu mundo tão limitado, Solitário imagina algo erroneamente, como quando lê que Armstrong define o primeiro homem a andar na lua e o imagina sentado lá, sozinho, um reflexo de si próprio e de seu sentimento de isolamento. E, ocasionalmente, nos pontos mais bonitos e tristes da história, Solitário se depara com algo que expõe de maneira bastante crua quão melancólica é a sua situação e quão triste e sozinho ele é, como quando lê a definição de fada enquanto um ser mágico dotado de poderes sobrenaturais, passando então a imaginar uma bela moça que o cura de suas deformidades.

Mesmo diante de tudo que foi dito eu não poderia jamais resumir aqui toda a sutileza, beleza e sensibilidade que a obra de Chabouté transmite e nem é essa a minha pretensão. Solitário é uma obra que merece ser lida e cada um vai experimentá-la de forma diferente, com base nas suas próprias experiências de vida, limitações, inquietações e anseios, tal qual o próprio personagem o faz a partir da leitura do seu dicionário. Espero que o que foi dito até aqui já sirva como um incentivo, mesmo que pequeno, para motivá-los a isso, atiçando a curiosidade de vocês.

No que me diz respeito e o que senti ao ler a obra, foco específico deste texto, o ponto que mais se destacou foi a ideia de que o farol é, ao mesmo tempo, o refúgio e a prisão de Solitário. É seu refúgio, porque é aquele lugar familiar, seguro e estável, onde ele pode ficar alheio às perturbações do mundo, dos olhares curiosos, acusatórios e assustados, dos julgamentos e das condenações que sofreria simplesmente por ser diferente. É, em suma, um local de segurança; nada ali pode lhe machucar, ferir ou magoar. Sendo assim, a princípio faz sentido para Solitário se limitar a este mundo seguro, ainda que limitado. Faz sentido que cada um de nós, em maior ou menor grau, em um momento ou outro da vida, pense assim. Eu já pensei assim e meu quarto foi, por muito tempo, meu farol.

No entanto, ainda que seja um refúgio, a solidão é também uma prisão e, pior ainda, uma da qual somos nossos próprios carcereiros quando nos submetemos á ela por vontade própria, por ser mais seguro, menos assustador e desafiador. Confinados àquilo que um dia nos serviu de consolo e porto seguro, estamos também nos privando de todas as experiências que poderíamos ter se nos aventurássemos a navegar mar afora. Assim, o suposto conforto eventualmente se torna sufocante e a aquele mundo seguro acaba se tornando um cárcere que nos limita.

Em determinado momento da narrativa, Solitário se depara com a definição de prisão: “local onde se encarceram os acusados, os condenados; casa sombria e triste, aprisionamento”.  Contraponho a ela a definição de refúgio: “lugar para onde se foge para escapar de um perigo; asilo, retiro”.  A solidão pode ser, e muitas vezes é, uma espécie de refúgio, um lugar para onde ir a fim de se fugir de certos perigos e dificuldades. Contudo, quando a solidão se torna isolamento, quando o conforto se torna auto restrição, temos então consumada a transformação de um refúgio em uma prisão, de um santuário em um cárcere no qual você age como carcereiro e carrasco de uma sentença que inadvertidamente lançou sobre si mesmo.

A decisão de içar velas e abandonar o farol e o porto seguro, de se aventurar pelos mares turbulentos da vida, estando sujeitos a desventuras e possíveis naufrágios, tempestades e tormentas, é algo que cabe a cada um de nós tomar, da mesma forma que cabe a Solitário. A questão, então, torna-se a seguinte: vale a pena permanecer assim, refém dos próprios receios e inseguranças, confinados a uma falsa sensação de conforto e segurança que, no fim das contas, acaba por nos limitar e impedir de viver plenamente, como realmente gostaríamos?

Talvez seja hora de desbravar o mar.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Um Convite (Ou por que escrevo)


 “Writing is not life, but I think that sometimes it can be a way back to life.”
― Stephen King, On Writing. 

                                   
Em tempos de Coronavírus, de quarentena e isolamento, de solidão relativa e, com alguma sorte, reflexões sobre a vida, o universo e tudo mais, resolvi tirar do papel um projeto antigo que sempre tive vontade de realizar e que nunca foi adiante seja por falta de tempo, inspiração ou confiança. Ainda me falta confiança, é claro, e o tempo permanece curto, como é da sua natureza, mas a inspiração me foi fornecida por esta situação atípica em que todos nos encontramos. 

Você deve estar se perguntando no que consiste esse projeto, isso se eu fui capaz de reter a sua atenção por mais de um parágrafo e não o alienei ainda, Caro(a) Leitor(a). De todo modo, não importa. Falo desde logo, com muita franqueza, que este não é um projeto voltado especificamente para você. Claro, ficarei muito feliz de tê-lo(a) como companheiro(a) nesta empreitada, porém essa é uma jornada, uma aventura me arrisco dizer, que faço principalmente para mim.

O projeto, e aqui se encerra o suspense e o mistério, é aparentemente bem simples: Escrever. Mais especificamente, escrever e compartilhar tais escritos através de uma página específica da internet, já criada inclusive para esse propósito tem um tempo considerável, porém nunca utilizada, existindo sem cumprir o seu propósito de ser. Eis que, finalmente, irei utiliza-la. Já não era sem tempo. 

Escrever pode parecer a princípio uma tarefa fácil, leviana e até mesmo banal.  No entanto, algumas particularidades pessoais tornam a atividade da escrita tudo menos isso para quem vos fala (ou escreve). Isto porque, não tendo sido agraciado com nenhum talento artístico, me voltei desde cedo para a literatura e a familiaridade com os livros tornou a escrita uma companhia frequente, sendo esta a minha principal forma de me expressar, lidar com emoções e com a vida em si. 

É a única forma de “expressão artística” que eu verdadeiramente possuo, você poderia dizer. Como consequência disso, a única maneira que eu sei como escrever é aquela que pressupõe uma honestidade total. Em cada palavra, cada página, está sendo despejado um pouco de mim. Assim, escrevo, logo existo. 

Então, com isso em mente, esse projeto ganha outros contornos. Não se trata apenas de escrever e compartilhar escritos. Trata-se de escrever, me expressar, me abrir e compartilhar tudo isso com aqueles que tiverem interesse em ler. Só que, como qualquer um que me conheça minimamente bem pode atestar, essas não são práticas muito típicas da minha pessoa. 

Pode-se perceber então o que eu quis dizer como sendo um projeto voltado especificamente para mim. É terapêutico, digamos. Ou assim eu espero que seja, pelo menos. No entanto, reitero, sinta-se mais do que bem vindo(a) para acompanhar essa jornada e todas as peripécias nela inclusas, e eu aposto que serão muitas. E, quem sabe, você pode gostar de ficar por aqui, não é mesmo?

Este projeto, o recanto onde vou despejar o excedente da minha cabeça, já possui um nome: Resquícios Analógicos (mais precisamente https://resquiciosanalogicos.blogspot.com/, além de uma conta no Instagram de mesmo nome que informará dos posts do blog além de outras coisas nessa mesma temática). Existem motivos e significados específicos por detrás da escolha deste título um tanto quanto inusitado, porém eles serão objeto de abordagem em um post específico para isso. Por agora, basta dizer que é uma referência a um traço específico da minha personalidade.

Trata-se então de escrever, de expressar e compartilhar. Mas escrever sobre o que, exatamente? Sobre o que me vier na telha, oras. Literatura, cinema e música; séries e quadrinhos também. Filosofia e Política, nas ocasiões em que a vontade bater na porta. Meu interesse é bastante amplo, ainda que meu conhecimento seja bem modesto. Ressalto que não se trata de um diário ou coisa do tipo. Eu escrevo sobre coisas que eu gosto e, ao fazer isso, expresso, de uma forma ou de outra, partes da minha pessoa e personalidade. Trata-se muito mais de uma análise ou comentário, o que quer que isso signifique afinal de contas. 

Em outras palavras, é através do que eu escrevo sobre um livro, uma música, uma série ou um filme que você pode compreender diversas coisas sobre a minha pessoa. Ou assim eu penso, pelo menos. Desse modo, Caro(a) Leitor(a), você pode esperar aparecerem por aqui textos dos mais variados temas e abordagens, dos mais sérios aos mais humorados e tudo o que pode existir nesse intermédio. 

Como exemplo, alguns dos temas já listados para postagens futuras incluem, mas não estão limitados a: Absurdo, Revolta e Solidariedade em Camus; Odisseu, a Prudência e o Mar; William Wilson, de Edgar Allan Poe, e o Fantasma da Própria Consciência; Escolha, Liberdade e Propósito: Uma Leitura de Blade Runner e Blade Runner 2049; Westworld, o Homem de Preto e a (A)Moralidade de um Mundo Destituído de Consequências; Ainda Não é o Fim do Mundo, Mas Você Pode Vê-lo Daqui: Reflexões Sobre o Gênero Cyberpunk; dentre inúmeros outros. 

As publicações serão feitas semanalmente (eu espero), toda sexta-feira, e os textos sempre seguirão uma estrutura de ensaio, isto é, são considerações e reflexões; não possuem nenhuma pretensão de exaurir a temática ou de colocar um ponto final em qualquer discussão. Trata-se muito mais de uma leitura e consideração pessoal, sempre com certo embasamento teórico e filosófico, sobre temas e questões presentes em livros, séries, filmes, etc, que me instigam de uma forma ou de outra.

Retomando a citação do início, Stephen King afirma que a escrita em si não é vida, mas ela pode ser uma maneira de se retornar à vida. Essa é precisamente a intenção desse meu pequeno projeto pessoal: recuperar ou até mesmo conquistar através da escrita uma parte da vida, da minha vida. E, mesmo essa sendo uma jornada pessoal, sinta-se convidado(a) para fazer parte dela, Caro(a) Leitor(a). Será um prazer ter você por aqui. 

Bem-vindos aos Resquícios Analógicos!

             https://www.instagram.com/resquiciosanalogicos/

Todos saúdem o Rei: porque você deveria ler Stephen King

“Fiction is the truth inside the lie.” Stephen King     Stephen King, com frequência chamado de “O Rei do Horror”, é um dos escritores co...