“Um navio de
pedra imóvel, um barco de granito que não balança. Ele não nos leva a lugar
algum, ele nunca acosta. A bordo de um farol, nunca atracaremos em porto algum”.
- Solitário,
de Chabouté.
As
histórias em quadrinhos são uma forma de arte que ainda é pouco reconhecida em
comparação com as demais. Não é incomum você perceber certa incredulidade, ou
até mesmo certo desdém, de pessoas mais versadas em termos de arte quando o
assunto é quadrinhos. Com frequência tem-se uma visão condescendente, vulgo
esnobe, ou até mesmo hostil em relação à afirmação de que os quadrinhos são sim
uma forma de arte merecedora da nossa atenção e digna de inúmeros elogios.
Talvez
essa “desconfiança”, vamos colocar assim, se dê pelo fato de que se trata de
uma forma de arte relativamente nova. Talvez seja porque enxerguem os
quadrinhos como algo fundamentalmente associado a uma “cultura de massa” e,
portanto, inferior. Talvez seja desconhecimento de causa, uma falta de
compreensão acerca das inúmeras produções de quadrinhos de altíssima qualidade
artística, tanto em termos de arte visual quanto da narrativa construída, como
Sandman e Y – O Último Homem, só para citar alguns. Talvez seja simplesmente
preconceito, puro e simples. Quem sou eu pra saber?
Situados
em uma posição que torna possível a utilização simultânea de arte visual e texto
literário na construção de uma narrativa, os quadrinhos nos oferecem uma
maneira singular de adentrar e desfrutar de uma história, isto é, tanto a
partir dos estímulos visuais oferecidos pelas ilustrações quanto por conta do
argumento construído textualmente nas páginas da obra. É precisamente nessa
junção que reside todo o potencial de uma história em quadrinhos enquanto forma
de arte; é por conta disso que ela se destaca enquanto modelo de construção de
narrativa.
O
artista francês Cristophe Chabouté, autor de trabalhos excelentes como Um
Pedaço de Madeira e Aço, afirma: “A questão dos quadrinhos é que o que a gente
não pode escrever, a gente desenha, e o que a gente não pode desenhar a gente
escreve. Então, é na combinação dos dois que eu me encontro”. Não é surpresa,
então, que ele utilize muito bem tanto do aspecto visual quanto do aspecto
literário para contar uma história bela e sensível sobre solidão, imaginação e
as coisas que nos fazem humanos naquela que é minha obra favorita de sua
autoria, Solitário.
A
narrativa, e não se preocupem que abordarei aqui os elementos centrais sem
estragar nada, conta a história de Solitário, um homem cujo mundo inteiro se
resume ao farol onde passou toda a sua vida, sem jamais conhecer nada além
disso. Filho de um faroleiro, Solitário nasceu com deformidades e seus pais,
envergonhados disso, nunca permitiram que ele tivesse qualquer contato ou
interação com o mundo exterior. Mesmo após a morte de seus pais, Solitário,
assim apelidado pelo sujeito que semanalmente deposita caixas de suprimento no
cais do farol, permaneceu ali, naquele rochedo e naquele farol, sem jamais
conversar com ninguém e se escondendo sempre que alguém se aproximava em
demasia.
Sozinho
exceto pela companhia de um pequeno peixe deixado em um aquário e alguns
brinquedos dados pelos seus pais quando era criança, Solitário passa seus dias
pescando, cuidando dos seus afazeres diários e da manutenção do farol. Com
muita sorte, eventualmente pesca alguma coisa do mundo exterior que veio,
vagando pelo mar, parar em suas mãos: uma bola de tênis, um carrinho de brinquedo,
um cavalo de madeira. À noite, no entanto, Solitário se volta para aquela que é
a sua principal forma de lazer, qual seja, a leitura de um velho e surrado
dicionário que ele guarda com considerável carinho em sua estante.
De
que maneira a leitura de um dicionário pode servir como lazer ou
entretenimento, você pode se perguntar talvez com certo espanto. A questão é
que Solitário se utiliza do dicionário como uma porta para o mundo exterior,
como um meio de imaginar como seria a vida lá fora. Toda noite, por diversas
vezes, ele lança o dicionário ao ar para então deixá-lo cair aberto em cima de
sua mesa e, de olhos fechados, posiciona sua mão sobre uma das definições ali
existentes. E, a partir disso, imagina. Tendo como base seu conhecimento
limitado sobre as coisas do mundo, Solitário busca tentar imaginar e
compreender aquilo que lê no dicionário, aquelas coisas que são tão distantes
da sua vida.
Ao
ler a definição de centauro, Solitário busca imaginar e compreender como seria
a junção de um cavalo com o torso de um homem. Ao ler a definição de batalha
imagina, a partir de seus soldadinhos de brinquedo, como seria esse combate
significativo entre dois exércitos. Ao ler a definição de borboleta, imagina
como seria esse inseto voador dotado de asas coloridas. Ao ler a definição de
solidão como pessoa que vive em local isolado ou deserto, ele reflete sobre a
sua própria condição. E ao ler a
definição de monstro, como criatura hedionda de aspecto assustador, Solitário
se levanta e olha no espelho.
É
nesta junção entre palavras, a partir das definições do dicionário, e imagens,
com a imaginação de Solitário tentando conceber e compreender aquilo que lê,
que o talento de Chabouté se destaca. De forma bastante sensível e delicada, o
autor explora a partir disso as limitações, inquietações e anseios de
Solitário. Quando se depara com alguma definição que não consegue compreender,
como a definição de monocotiledônea, ele se frustra e desiste da leitura pelo
dia, indo dormir. Por diversas vezes, em função do seu mundo tão limitado,
Solitário imagina algo erroneamente, como quando lê que Armstrong define o primeiro
homem a andar na lua e o imagina sentado lá, sozinho, um reflexo de si próprio
e de seu sentimento de isolamento. E, ocasionalmente, nos pontos mais bonitos e
tristes da história, Solitário se depara com algo que expõe de maneira bastante
crua quão melancólica é a sua situação e quão triste e sozinho ele é, como
quando lê a definição de fada enquanto um ser mágico dotado de poderes sobrenaturais,
passando então a imaginar uma bela moça que o cura de suas deformidades.
Mesmo diante
de tudo que foi dito eu não poderia jamais resumir aqui toda a sutileza, beleza
e sensibilidade que a obra de Chabouté transmite e nem é essa a minha
pretensão. Solitário é uma obra que merece ser lida e cada um vai
experimentá-la de forma diferente, com base nas suas próprias experiências de
vida, limitações, inquietações e anseios, tal qual o próprio personagem o faz a
partir da leitura do seu dicionário. Espero que o que foi dito até aqui já
sirva como um incentivo, mesmo que pequeno, para motivá-los a isso, atiçando a
curiosidade de vocês.
No que me diz
respeito e o que senti ao ler a obra, foco específico deste texto, o ponto que
mais se destacou foi a ideia de que o farol é, ao mesmo tempo, o refúgio e a
prisão de Solitário. É seu refúgio, porque é aquele lugar familiar, seguro e
estável, onde ele pode ficar alheio às perturbações do mundo, dos olhares
curiosos, acusatórios e assustados, dos julgamentos e das condenações que
sofreria simplesmente por ser diferente. É, em suma, um local de segurança;
nada ali pode lhe machucar, ferir ou magoar. Sendo assim, a princípio faz
sentido para Solitário se limitar a este mundo seguro, ainda que limitado. Faz
sentido que cada um de nós, em maior ou menor grau, em um momento ou outro da
vida, pense assim. Eu já pensei assim e meu quarto foi, por muito tempo, meu
farol.
No entanto,
ainda que seja um refúgio, a solidão é também uma prisão e, pior ainda, uma da
qual somos nossos próprios carcereiros quando nos submetemos á ela por vontade
própria, por ser mais seguro, menos assustador e desafiador. Confinados àquilo
que um dia nos serviu de consolo e porto seguro, estamos também nos privando de
todas as experiências que poderíamos ter se nos aventurássemos a navegar mar
afora. Assim, o suposto conforto eventualmente se torna sufocante e a aquele mundo
seguro acaba se tornando um cárcere que nos limita.
Em determinado
momento da narrativa, Solitário se depara com a definição de prisão: “local
onde se encarceram os acusados, os condenados; casa sombria e triste,
aprisionamento”. Contraponho a ela a
definição de refúgio: “lugar para onde se foge para escapar de um perigo;
asilo, retiro”. A solidão pode ser, e muitas
vezes é, uma espécie de refúgio, um lugar para onde ir a fim de se fugir de certos
perigos e dificuldades. Contudo, quando a solidão se torna isolamento, quando o
conforto se torna auto restrição, temos então consumada a transformação de um
refúgio em uma prisão, de um santuário em um cárcere no qual você age como
carcereiro e carrasco de uma sentença que inadvertidamente lançou sobre si
mesmo.
A decisão de
içar velas e abandonar o farol e o porto seguro, de se aventurar pelos mares
turbulentos da vida, estando sujeitos a desventuras e possíveis naufrágios,
tempestades e tormentas, é algo que cabe a cada um de nós tomar, da mesma forma
que cabe a Solitário. A questão, então, torna-se a seguinte: vale a pena
permanecer assim, refém dos próprios receios e inseguranças, confinados a uma falsa
sensação de conforto e segurança que, no fim das contas, acaba por nos limitar
e impedir de viver plenamente, como realmente gostaríamos?
Talvez seja
hora de desbravar o mar.